segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Ação de Bolsonaro contra Folha choca ex-ministros do Supremo e do STJ

A exclusão da Folha de S.Paulo, após promessa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), de uma licitação da Presidência da República para o fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa configura "ação ilícita", "desvio de poder" e "fere o decoro do cargo", afirmam especialistas consultados, incluindo ex-integrantes de tribunais superiores.
"A meu pensar não se trata em rigor de uma licitação, mas de uma ilícita ação. Escancaradamente desrespeita a lei de licitações, que resume e sintetiza muito bem os próprios princípios diretamente constitucionais da matéria", afirma Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).
O ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Gilson Dipp avalia que o ato de Bolsonaro fere princípios constitucionais como o da impessoalidade e da moralidade, desrespeita as leis de licitação e de improbidade administrativa, além de ir contra o decoro do cargo.
Edital de pregão eletrônico publicado na quinta-feira (28) no Diário Oficial da União prevê a contratação por um ano, prorrogável por mais cinco, de uma empresa especializada em oferecer a assinatura dos veículos de imprensa à Presidência.
A lista cita 24 jornais e 10 revistas. A Folha não é mencionada. O pregão eletrônico, marcado para 10 de dezembro, tem um valor total estimado de R$ 194 mil: R$ 131 mil para jornais e R$ 63 mil para revistas. O edital da Presidência prevê, por exemplo, 438 assinaturas de jornais, sendo 74 de O Globo e 73 de O Estado de S. Paulo.
Procurada pela reportagem, a Presidência da República ainda não informou o motivo da ausência do jornal no processo de licitação e o critério técnico adotado.
Ao falar sobre o tema, Bolsonaro disse na manhã da sexta-feira (29) que estava "deixando de gastar dinheiro público". 
"Olha, a Folha de S.Paulo não serve nem para forrar aí o galinheiro. Olha só, eu estou deixando de gastar dinheiro público", disse. Na mesma entrevista, Bolsonaro fez novas ameaças à Folha e disse que boicota produtos de anunciantes do jornal.
De acordo com Ayres Britto, os atos da administração pública precisam ser regidos pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e igualdade.
Portanto, ele diz que é possível concluir "com extrema facilidade" que a retirada da Folha do processo de concorrência "não tem a menor justificação objetiva". 
"E a subjetividade, o personalismo, a fulanização, as preferências pessoais do administrador público, tudo isso não conta como categoria jurídica. Pelo contrário, é categoria antijurídica", conclui Ayres Britto, para quem o edital que convocou a licitação deveria ser anulado.
Para o professor emérito da PUC-SP Celso Antônio Bandeira de Mello, a retirada do jornal do processo é "um ato nulo" e constitui "um desvio de poder óbvio". 
"Você não pode excluir uma pessoa porque você não gosta dela ou porque te critica. Isso não tem nada a ver com as razões jurídicas de exclusão, então é claro que se trata de um ato nulo", diz Bandeira de Mello.
"Desvio de poder é uso de uma competência para alcançar um resultado diferente daquilo previsto na regra de competência. A regra de competência não é prevista para alguém perseguir outros ou empresa. Portanto é um ato aberrantemente nulo", acrescenta.
Para Bandeira de Mello, o fato de estar configurado desvio de poder faz com que seja possível a formulação de um pedido de impeachment contra Bolsonaro.
"É como se alguém dissesse: 'Eu quero verificar o que vai acontecer comigo e vou praticar um desvio de poder chocante'. É um ato repugnante na verdade", conclui. 
O ex-ministro do STJ Gilson Dipp afirma que ficou patente que o objetivo do presidente é promover uma "retaliação política" em razão da cobertura crítica do jornal, o que configura uma "censura expressa". 
"É tão inadmissível o ato que fere inúmeros princípios constitucionais e inúmeras normas legais, além do próprio decoro da Presidência da República. Parece que o presidente Bolsonaro conseguiu, num ato só, trazer uma série de consequências jurídicas legais e constitucionais. Se quisesse fazer isso de propósito, ele não conseguiria. Uma mera declaração faz incidir sobre ela o ferimento de inúmeros princípios legais e constitucionais ao mesmo tempo", afirma Dipp.
"É só escolher quem tem a legitimidade para acioná-lo na Justiça. Tem tantas infrações que é só escolher. E acho que tem que se propor, mesmo com todas as dificuldades de se processar o presidente da República. Tem sim que promover essas ações, entulhar a Presidência da República de ações. Ele é o líder e se manifesta por todo um governo totalmente autoritário", acrescenta. 
Ainda segundo Dipp, a infração de normas como as leis de licitação e de improbidade administrativa são cabíveis de punições específicas, até mesmo o impedimento do presidente. 
"A Lei de Improbidade pode levar até o impedimento do presidente. Por ato de improbidade ele pode ser multado, perder os direitos políticos. Ele pode ter uma série de consequências pessoais", diz o ex-ministro do STJ. 
"A falta de decoro está entre os casos explicitados na Lei de Responsabilidade, que também pode levar ao impedimento. Está tudo na lei. Não estamos inventando", conclui. 
O Grupo Prerrogativas, que reúne diversos especialistas do direito, também se manifestou sobre o tema.
Em nota, seus integrantes afirmam que a exclusão da Folha do processo licitatório faz do Estado "instrumento de vingança pessoal do ocupante do cargo de presidente da República".
Além de contrariar os princípios da impessoalidade e imparcialidade, o grupo diz que Bolsonaro também praticou abuso de poder, conflito de interesse e desvio de finalidade. 
"É imperativo que o ato administrativo de exclusão sumária do jornal seja revogado, assim como é imperativo que o Poder Legislativo, no seu papel de fiscalização dos atos do governo, investigue a impropriedade tanto do ato como da fala do presidente da República", diz a nota. 
   

Claudério Augusto via site Yahoo